A
(de) Formação Humana e o Mundo do Trabalho: a produção de subjetividades
flexíveis em tempos de acumulação
flexível do capital*
Maria Emília
Pereira da Silva**
Introdução
A
flexibilidade surge como a grande mudança na estética do capitalismo atual.
Diz-se que vivemos num capitalismo “flexível”. O conhecido “sistema
capitalista”, de “livre empresa” ou “iniciativa privada”, adquiriu essa nova
qualidade. Agregada à idéia de liberdade, a flexibilidade que o
caracteriza vem acompanhada do combate à rigidez da burocracia e da apologia ao
risco, levando a crer que agora todos estão mais livres para organizar seu
trabalho, sua vida. E assim é a rotina destituída do seu antigo status.
Espera-se
que os trabalhadores sejam mais ágeis, abertos a mudanças no processo de
trabalho e predispostos a assumir riscos, sem aquela cega obediência a leis e
procedimentos formais da época do fordismo. Entretanto, sem a visibilidade das
antigas regras, os novos controles dificultam seu entendimento, sobretudo, em
relação a aspectos de subjetividade, como entender o modo pelo qual a
flexibilidade age sobre o caráter[1]. Contudo, mais difícil se
tornará entender como se produzem as novas subjetividades, sem um détour
que leve à compreensão de como se configurou o capitalismo na sua atual fase
flexível. É evidente a imensa mudança com que se dá a conhecer aos nossos olhos,
mas trata-se de uma mudança aparente em sua forma. A lógica inerente da
acumulação capitalista e das suas tendências de crise parece inalterada. Com
efeito, é preciso considerar que se trata de um
sistema dado a metamorfoses a cada época, que não se apresentam abruptamente,
mas através de momentos de transição, de crises materializadas em mudanças, que
prenunciam um novo regime de acumulação. Esta é a lógica capitalista, e, ao que
tudo parece, vem operando desde o final do século passado, sob a nova forma
flexível.
É certo que
a palavra flexibilidade tem uma história. Sua origem está, no século
quinze, na simples observação de uma árvore, cujos galhos se dobram ao vento,
mas não quebram, sempre retornam à posição inicial. Se visto nesse sentido, o
comportamento humano flexível adquire a mesma elasticidade, podendo
adaptar-se a situações diversas, sem deixar se abater. Será este o sentido que
hoje impulsiona a sociedade a criar instituições mais flexíveis, a buscar se
livrar dos males da rotina? Estariam as práticas de flexibilidade mais propícias
a forças que envergam as pessoas? Os novos imperativos do capital estariam
produzindo subjetividades resistentes ou submissas? Que alternativas haverá de
sobrevivência e auto-realização face aos males da flexibilidade nesse
contexto?
Houve um
tempo em que a teoria sobre os sentimentos morais se baseava nos estímulos
externos, variáveis, numa flexibilidade vinda de fora, que deixava o indivíduo
ao sabor dos acontecimentos. Após esse momento, porém, relacionou-se esse tipo
de flexibilidade a virtudes empresariais. Economistas políticos do século
opuseram a agilidade do empresário à lerdeza do trabalhador industrial. O
comportamento flexível era visto como gerador de liberdade pessoal. Hoje, a nova
economia política vem se contrapor a essa expectativa. Mas, repudiando a rotina
burocrática em busca da flexibilidade, produziram-se novas estruturas de poder e
controle. Estruturas que estão longe de criar as condições para a emancipação do
homem.
Analisar a
flexibilidade implica, por outro lado, em examinar sua oponente: a rigidez.
Termo expressivo, ao relacionar-se à incapacidade do fordismo e do keynesianismo
em conter as inerentes contradições capitalistas. Dificuldades cada vez mais
evidentes, quando os problemas de rigidez se apresentavam nos investimentos de
capital em sistemas de produção em massa; nos mercados; na alocação e contratos
de trabalho. A rigidez dos compromissos do Estado se intensificava à proporção
que aumentavam os programas de assistência, como seguridade social, direitos de
pensão etc., enquanto as finanças ficavam além dos recursos. Instala-se uma
profunda crise fiscal e de legitimidade desse Estado intervencionista. A “onda
inflacionária” que poria termo à expansão alcançada no pós-guerra, tem início
nesse momento, por meio de uma política monetária capaz de dar uma resposta
flexível, que consistia em imprimir a quantidade de moeda necessária à
estabilização da economia.
As
oscilações e incertezas que caracterizaram a época da profunda recessão de 1973,
agravada pelo impacto da crise do petróleo, fizeram das décadas de 1970 e 1980
um período de reestruturação econômica e de reajuste social e político. Criaram
um espaço social propício a novas experiências no âmbito da organização
industrial e da vida política e social. Talvez nessas experiências possamos
encontrar os primeiros vestígios de um novo modo de acumulação, que traz no seu
bojo um distinto sistema de regulamentação política e social.
Flexibilidade:
uma noção polissêmica
Não há
unanimidade em termos do que representa a flexibilidade no mundo atualmente. Uma
síntese de Harvey (2005) mostra que se estão esboçando três posições amplas, que
podem ajudar a entender os desdobramentos dessa noção na realidade concreta dos
nossos dias.
A
primeira posição vê as novas tecnologias abrindo a possibilidade de uma
reconstituição das relações de trabalho e dos sistemas de produção em bases
completamente distintas, no âmbito social, econômico e geográfico. Nessa
concepção, estaríamos na presença de uma espécie de “segunda divisão
industrial”. As novas formas de organização do trabalho e os novos “princípios
locacionais” estariam transformando radicalmente a face do capitalismo.
Uma série de
fatos tem contribuído para a formação de um corrente de pensamento que vislumbra
grande transformação no modo de operar do capitalismo no final do século XX.
Fatos como, o retorno do interesse pelos pequenos negócios; a redescoberta do
trabalho duro e não muito bem remunerado, como também de atividades informais de
vária natureza; o reconhecimento do importante papel desempenhado por essas
formas de trabalho no desenvolvimento econômico na contemporaneidade, até mesmo
nos países altamente industrializados e a tentativa de delinear o “percurso das
rápidas mudanças geográficas do emprego e das fortunas” (Harvey, 2005, p.
177).
Na
segunda posição, a flexibilidade é considerada um termo “extremamente
poderoso” que dá legitimidade a um conjunto de práticas políticas, sobretudo,
reacionárias e contrárias ao trabalhador. Alega-se não haver nenhuma novidade na
busca capitalista de maior flexibilidade ou vantagem geográfica e que são fracas
ou insuficientes as provas objetivas de uma mudança radical na maneira de operar
do capitalismo. Contestando essa visão, Harvey afirma serem demasiado claras as
provas de uma crescente flexibilidade em todo o mundo capitalista, como a
subcontratação, o emprego temporário, as atividades autônomas etc., admitindo,
porém, que as críticas realizadas por essa posição introduzem algumas correções
importantes no debate.
Para Harvey,
é por certo correta, e, segundo o autor, uma leitura cuidadosa de O Capital de
Marx lhe dá sustentação, a “insistência de que não há nada essencialmente novo
no impulso para a flexibilidade e de que o capitalismo segue periodicamente
esses tipos de caminhos”. Também merece cuidadosa consideração, segundo esse
autor, o argumento de que “há um agudo perigo de se exagerar a significação das
tendências de aumento da flexibilidade e da mobilidade geográfica, deixando-nos
cegos para a força que os sistemas fordistas de produção implantados ainda têm”
(ibidem). As conseqüências ideológicas e políticas da superacentuação da
flexibilidade, no sentido estrito de técnica de produção e de relações de
trabalho, também são consideradas suficientemente sérias para nos levar a
“sóbrias e cautelosas avaliações do grau do imperativo da flexibilidade”.[2]
Embora
relevantes os argumentos em prol dessa posição, Harvey considera igualmente
“perigoso” fazer de conta que nada mudou, quando
a maioria dos trabalhadores assiste à realidade da desindustrialização e da
transferência geográfica de fábricas, das práticas mais flexíveis de emprego do
trabalho e da flexibilidade dos mercados de trabalho, da automação e da inovação
de produtos.
A
terceira é uma posição intermediária entre os dois extremos anteriores.
Representa a idéia defendida por Harvey de uma transição do fordismo para a
acumulação flexível. Segundo essa visão, as tecnologias e formas organizacionais
flexíveis não se tornaram hegemônicas em toda parte, como também o fordismo que
as precedeu não o foi. O entendimento é o de que a atual conjuntura se
caracteriza por uma combinação de produção fordista altamente eficiente, com
recorrência a tecnologia e produto flexível, em alguns setores e regiões, e de
sistemas de produção mais tradicionais que se apóiam em relações de trabalho
“artesanais”, paternalistas ou patriarcais (familiares) que se distinguem por
diferentes mecanismos de controle do trabalho. Harvey avalia que estes últimos
cresceram a partir de 1970, mesmo nos países capitalistas avançados e muitas
vezes às custas da linha de produção da fábrica fordista, mudança que tem
importantes implicações no âmbito do sistema de produção e apropriação de
mais-valia, na natureza e composição da classe trabalhadora global e mesmo nas
condições de formação de consciência e de ação política.[3]
Segundo
Harvey, não é irreversível a “passagem para sistemas alternativos de controle do
trabalho”, com todas as implicações políticas que isso acarreta. Trata-se de uma
resposta tradicional à crise, já que a desvalorização da força de trabalho
sempre foi “a resposta instintiva dos capitalistas” à queda de lucros.
Entretanto, alerta esse autor, a generalidade dessa afirmativa esconde alguns
movimentos contraditórios. Se as novas tecnologias permitiram o aumento do poder
de camadas privilegiadas, ao mesmo tempo possibilitaram a sistemas alternativos
de produção e de controle do trabalho abrir caminho para a alta remuneração de
habilidades técnicas, gerenciais e de caráter empreendedor. A tendência tem sido
a de aumentar as desigualdades de renda, prenunciando o surgimento de uma nova
aristocracia do trabalho e de uma subclasse mal-remunerada e desprovida de
poder. Esse quadro, no ponto de vista do autor, traria sérios problemas quanto à
sustentação da demanda efetiva e coloca no horizonte a possibilidade de uma
crise de subconsumo, que, afinal, é a materialização do tipo de crise que o
fordismo-keynesianismo pretendeu evitar. Por isso, Harvey não vê como solução de
curto prazo para as tendências de crise do capitalismo o apelo a um “monetarismo
neoconservador” que recorre a modos flexíveis de acumulação e à desvalorização
geral da força de trabalho aumentando o controle do trabalho.
1.1. Flexibilidade: revolta contra a rotina ou
projeto de auto-realização humana?
Se na
sociedade moderna o tempo rotineiro, burocrático, é visto como ameaça que pode
paralisar o trabalho, o governo e outras instituições, no início do capitalismo
industrial não eram tão evidentes os malefícios da rotina. Segundo Sennett
(1999, p. 35), em meados do século dezoito, parecia que o trabalho repetitivo
apontava duas diferentes direções, “uma positiva e frutífera, outra destrutiva”.
O lado positivo foi descrito por Diderot, que acreditava poder a rotina no
trabalho ser como qualquer outra forma de aprendizado por repetição, “um
professor necessário” (idem). O lado negativo do tempo de trabalho regular foi
representado “da forma mais dramática” por Adam Smith, para quem a rotina
embrutece o espírito. Para Diderot, a
repetição e o ritmo podiam levar o trabalhador a alcançar “a unidade mental e
manual” no trabalho. Estava convicto de que, pelo trabalho, os seres humanos
encontram a paz consigo mesmo; acreditava que a partir do momento em que dominam
a rotina e seus ritmos, as pessoas ao mesmo tempo assumem o controle e se
acalmam. Na visão de Smith (idem, p. 39), “essas imagens de ordeira evolução,
fraternidade e serenidade representam um sonho impossível”, pois na realidade “a
rotina embrutece o espírito”.
Hoje, a flexibilidade ganha espaço em
detrimento da rotina. Se outrora o tempo rotinizado convertera-se numa conquista
pessoal, agora é o tempo flexível que ganha status no mundo do trabalho e
da vida em geral.
Teria a
rotina esgotado seu papel face às demandas do capital? Nos setores dinâmicos da
economia a rotina vem dando lugar à flexibilidade, entretanto, o fordismo ainda
se faz majoritariamente presente em termos da força de trabalho. Estima-se que
pelo menos dois terços dos trabalhos são repetitivos, sendo que o uso do
computador no trabalho também envolve, na sua maioria, tarefas rotineiras
(Sennett, idem). E então retornamos à discussão anterior: o trabalho rotineiro
precisa ser necessariamente degradante? Por outro lado, experiências mais
flexíveis realmente estimulam as pessoas no trabalho? Supondo que há um efeito
pacificador da rotina sobre o caráter, parece central a questão suscitada por
Sennett (idem), no sentido de saber como a flexibilidade vai exatamente fazer um
“ser humano mais engajado”.
Na concepção
de Marx, somente se existir uma necessidade interior de trabalho é que este
“poderá perder seu caráter de necessidade exterior ao homem” (Mészáros, 1981, p.
167). Entendia ser esta necessidade exterior uma atividade vital do homem,
apenas, enquanto meio para atingir um fim, e não como uma “atividade livre” com
um fim em si mesmo. Nesse sentido, o trabalho como auto-realização humana só é
possível caso se torne para o homem uma necessidade interior.
Já que o
trabalho só é gozo, como necessidade positiva, como necessidade interior,
a auto-realização, a realização humana, é inseparável do aparecimento dessa
necessidade positiva. A liberdade é, assim, a realização do objetivo do homem: a
auto-realização no exercício autodeterminado e externamente não-impedido dos
poderes humanos. Como autodeterminação, a base desse exercício livre dos poderes
humanos não é um “imperativo categórico” abstrato, que permanece exterior
ao ser humano real, mas uma necessidade positiva. Os meios (trabalho) e fins
(necessidade) nesse processo de humanização transformam-se mutuamente e criam
uma atividade verdadeiramente humana, feita de gozo e auto-realização, pela qual
o poder e a finalidade, os meios e fins, surgem numa unidade natural (humana)
(Mészáros, 1981, p. 167).
Tal análise
nos leva a refazer a questão nos termos de Marx: como pode a flexibilidade no
mundo do trabalho contribuir para a transformação do homem num “rico ser
humano”, um ser auto-realizado? Esta discussão remete à questão central do
debate – a resolução da contradição entre meios e fins, entre a necessidade e a
liberdade, ou como dizia Engels, “a reconciliação da humanidade com a natureza e
consigo mesma” (apud Mészáros, idem, p. 166)[4].
2.
Acumulação flexível: o combate à rigidez do fordismo
A acumulação
flexível, expressão cunhada por Harvey para designar o atual estágio
capitalista, é assim denominada por marcar um confronto direto com a rigidez do
fordismo. Segundo o autor, ela se apóia na flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Poderíamos dizer que essa forma de acumulação caracteriza-se pela inovação:
“surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas
altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”
(idem, p. 140). Ressalte-se que a acumulação flexível “envolve rápidas mudanças
dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões
geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado
‘setor de serviços’, bem como conjuntos industriais completamente novos em
regiões até então subdesenvolvidas” (ibidem). Envolve também um novo movimento
que Harvey (idem) denomina de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista,
expressão com a qual pretende indicar que “os horizontes temporais da tomada de
decisões privada e pública se estreitam, enquanto a comunicação via satélite e a
queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata
dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado”.
Em
conseqüência do aumento dos poderes de flexibilidade e mobilidade, os
empregadores passaram a exercer maior controle sobre a força de trabalho; o
trabalho organizado ficou abalado pela “reconstrução de focos de acumulação
flexível” em regiões sem tradição industrial e pela “reimportação”, para os
centros mais antigos, das práticas e normas estabelecidas nessas novas áreas.
Isso, ao que parece, devido à acumulação flexível “os níveis relativamente altos
de desemprego ‘estrutural’, a rápida destruição e reconstrução de habilidades,
ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical –
uma das colunas políticas do regime fordista” (idem, p. 141).
Considerando
que a acumulação flexível é uma forma de capitalismo, é esperado que algumas
proposições básicas permaneçam. Nesse sentido, cabe lembrar as três
condições necessárias do modo capitalista de produção propostas por Marx, que
foi capaz de mostrar que estas eram inconsistentes e contraditórias, e que, por
isso, a dinâmica do capitalismo era necessariamente propensa a crises[5] (Harvey, idem, p. 164): o
capitalismo é orientado para o crescimento[6]; o crescimento em valores
reais se apóia na exploração do trabalho vivo na produção,[7] o capitalismo é, por
necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico.[8]
O argumento
marxista é, por conseguinte, que a tendência de superacumulação nunca pode ser
eliminada sob o capitalismo. Trata-se de um interminável e eterno problema de
todo modo capitalista de produção. A única questão, portanto, é “como exprimir,
conter, absorver ou administrar essa tendência” de modo a não ameaçar a ordem
social capitalista, e isso implica em escolhas reais “para que a ordem social
não se transforme em caos” (idem, p. 170):
a)
Desvalorização de: mercadorias, capacidade produtiva, valor do dinheiro
Talvez
associada à destruição direta, fornece um modo de lidar com excedentes de
capital. A força de trabalho também pode ser “desvalorizada e até destruída”
devido às taxas crescentes de exploração, à queda da renda real, ao desemprego,
ao aumento de mortes no trabalho, à piora da saúde e menor expectativa de vida
etc[9].
b)
Controle macroeconômico
Pode conter
o problema da superacumulação, por meio da institucionalização de algum sistema
de regulação, talvez por um considerável período de tempo.[10] Entretanto, cabe lembrar
que “foi necessária uma grande crise de superacumulação para ligar a produção
fordista a um modo keynesiano de regulamentação estatal antes de se poder
garantir, por qualquer período estendido, alguma espécie de crescimento
macroeconômico equilibrado” (idem, p. 170). Trata-se, então, de considerar que
“a ascensão de um regime particular de acumulação” é resultado de todo um
conjunto de decisões econômicas e políticas (nem sempre dirigidas
conscientemente para um fim específico) provocadas pela persistência de
manifestações da superacumulação (idem).
c)
Absorção da superacumulação
Pelo
deslocamento temporal e espacial, oferece um “terreno mais rico e duradouro”,
porém muito mais problemático, no qual tentar controlar o problema da
superacumulação[11].
2.1.
Acumulação flexível: mais-valia combinada
Na
acumulação flexível, Harvey vê uma “recombinação simples” de mais-valia absoluta
e mais-valia relativa, que são as duas estratégias para obtenção do lucro,
definidas por Marx.
A
mais-valia absoluta é apoiada na extensão da jornada de
trabalho em termos do salário necessário para garantir a reprodução da classe
trabalhadora, em relação a um dado padrão de vida. Conforme sinaliza Harvey
(idem, p. 174), “a passagem para mais horas de trabalho associadas com uma
redução geral do padrão de vida através da erosão do salário real ou da
transferência do capital corporativo de regiões de altos salários para regiões
de baixos salários representa uma faceta da acumulação flexível de capital”,
ressaltando ainda esse autor que “muitos dos sistemas padronizados de produção
construídos sob o fordismo foram, por essa razão, transferidos para a periferia,
criando o “fordismo periférico”.[12]
Na
mais-valia relativa, a mudança organizacional e tecnológica “é posta em
ação para gerar lucros temporários para firmas inovadoras e lucros mais
generalizados com a redução dos custos dos bens que definem o padrão de vida do
trabalho” (idem, ibidem).
Também aqui
a violência proliferante dos investimentos, que cortou o emprego e os custos do
trabalho em todas as indústrias – mineração de carvão, produção de aço, bancos e
serviços financeiros -, foi um aspecto deveras visível da acumulação do capital
nos anos 80. Mas apoiar-se nessa estratégia enfatiza a importância de forças de
trabalho altamente preparadas, capazes de compreender, implementar e administrar
os padrões novos, mas muito mais flexíveis, de inovação tecnológica e orientação
do mercado. Surge então um estrato altamente privilegiado e até certo ponto
poderoso da força de trabalho, à medida que o capitalismo depende cada vez mais
da mobilização de forças de trabalho intelectual como veículo para mais
acumulação (idem, p. 174).
O que conta,
no final, diz Harvey, é o modo particular como as estratégias absoluta e
relativa se combinam e se alimentam mutuamente. Esse autor chama atenção para o
curioso fato de que o desenvolvimento de novas tecnologias gerou excedentes de
força de trabalho que tornaram mais viável o retorno de estratégias absolutas de
extração de mais-valia, até mesmo nos países capitalistas avançados. Entretanto,
o que Harvey avalia como talvez mais inesperado é o modo como as novas
tecnologias de produção e as novas formas de coordenar a organização do trabalho
favoreceram o retorno dos sistemas de trabalho doméstico, familiar e
paternalista, considerando a tendência de Marx em supor que estes “sairiam do
negócio ou seriam reduzidos a condições de exploração cruel e de esforço
desumanizante a ponto de se tornarem intoleráveis sob o capitalismo
avançado”.
O retorno da
superexploração em Nova Iorque e Los Angeles, do trabalho em casa e do
“teletransporte”, bem como o enorme crescimento das práticas de trabalho do
setor informal por todo o mundo capitalista avançado, representa de fato uma
visão bem sombria da história supostamente progressista do capitalismo (idem, p.
175).
Estaria
havendo o que Harvey denomina de “ecletismo nas práticas de trabalho?” De fato,
parece que as condições imprimidas pela acumulação flexível estão favorecendo a
coexistência de sistemas de trabalho alternativos num mesmo espaço, facilitando
aos empreendedores capitalistas a escolha. Assim, adotando o exemplo desse autor
(idem, ibidem), “o mesmo molde de camisa pode ser produzido por fábricas de
larga escala na Índia, pelo sistema cooperativo da ‘Terceira Itália’, por
exploradores em Nova Iorque e Londres ou por sistemas de trabalho familiar em
Hong Kong”.
3. O mercado
de trabalho em condições de acumulação flexível
É fato
que o mercado de trabalho reestruturou-se, e de forma radical. Regimes e
contratos de trabalho mais flexíveis passaram a ser impostos, tendo em vista o
enfraquecimento do poder sindical e a grande quantidade de mão-de-obra
excedente, os desempregados ou subempregados, em conseqüência da “forte
volatilidade” do mercado, do aumento da competição e do “estreitamento” das
margens de lucro. Partindo dessa análise, Harvey (idem) imagina ser difícil
esboçar um quadro geral claro, considerando que o objetivo dessa flexibilidade é
“satisfazer as necessidades com freqüência muito específicas de cada empresa”.
Observa que mesmo em relação aos empregados regulares vêm se tornando muito mais
comuns sistemas como “nove dias corridos” ou jornadas de trabalho com, em média,
quarenta horas semanais ao longo do ano, mas que, por outro lado, “obrigam o
empregado a trabalhar em períodos de redução da demanda”. Mas é à “aparente
redução” do emprego regular (que vem favorecendo o crescente uso do trabalho em
tempo parcial, temporário ou subcontratado) que Harvey atribui maior
importância, ao analisar a estrutura do mercado de trabalho em condições de
acumulação flexível:[13]
O
centro é um grupo que diminui cada vez mais e é composto por
empregados “em tempo integral, condição permanente e posição essencial para o
futuro de longo prazo da organização”. Goza de maior segurança no emprego, boas
perspectivas de promoção e reciclagem. Tem garantia de pensão, seguro e “outras
vantagens indiretas relativamente generosas”. É esperado que esses trabalhadores
sejam adaptáveis, flexíveis, com mobilidade geográfica, caso seja necessário. Em
época de dificuldade na empresa, mesmo empregados que desenvolvem funções de
alto nível (que vão de projetos à propaganda e à administração financeira) podem
ser substituídos por empregados subcontratados, devido aos custos potenciais da
dispensa temporária nesse grupo central, sendo, no entanto, mantido um grupo de
gerentes relativamente pequeno.
A
periferia abrange dois subgrupos “bem distintos”. O primeiro grupo
periférico é composto de empregados em tempo integral, com habilidades
facilmente disponíveis no mercado de trabalho (como pessoal do setor financeiro,
secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de trabalho manual menos
especializado). São trabalhadores com menos acesso a oportunidades de carreira,
levando esse grupo a se caracterizar por uma alta taxa de rotatividade, “o que
torna as reduções da força de trabalho relativamente fáceis por desgaste
natural”.
O segundo
grupo periférico: numericamente, a flexibilidade neste grupo é maior do que
no primeiro periférico e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais,
pessoal com contrato por tempo determinado, temporários, subcontratados e
treinandos com subsídio público. Neste grupo há ainda menos segurança de
emprego. Evidencia-se um “crescimento bastante significativo” desta categoria
nos últimos anos.
Esses
“arranjos” de emprego flexíveis em si não criam, segundo Harvey, uma forte
insatisfação trabalhista, pois a flexibilidade pode ser, às vezes, benéfica para
ambos os lados. Contudo, sob o ponto de vista dos trabalhadores como um todo, os
“efeitos agregados” parecem não ser nada positivos, quando consideramos a
cobertura de seguro, os direitos de pensão, os níveis salariais e a segurança no
emprego.
O aumento da
subcontratação e do trabalho temporário parece indicar a direção mais radical da
mudança, e não o trabalho em tempo parcial, sinaliza Harvey, argumentando que no
Japão esse é um padrão seguido há muito e que, mesmo no fordismo, a
subcontratação de pequenas empresas “agia como protetor das grandes corporações
do custo das flutuações do mercado”. E, assim, esse autor admite que a atual
tendência dos mercados de trabalho é a redução do número de trabalhadores
“centrais” e a ampliação do emprego de uma força de trabalho facilmente admitida
e descartada sem custos, quando a empresa vai mal.
Evidentemente,
isso não mudou de maneira radical os problemas, surgidos nos anos 60, dos
mercados de trabalho “duais” ou segmentados, mas o reformulou segundo uma lógica
bem diferente. Embora seja verdade que a queda da importância do poder sindical
reduziu o singular poder dos trabalhadores brancos do sexo masculino nos
mercados do setor monopolista, não é verdade que os excluídos desses mercados de
trabalho – negros, mulheres, minorias étnicas de todo tipo – tenham adquirido
uma súbita paridade (exceto no sentido de que muitos operários homens e brancos
foram marginalizados, unindo-se aos excluídos) (idem, p. 145).
A
transformação na estrutura do mercado de trabalho também se verificou, com igual
importância, na organização industrial. A subcontratação organizada, por
exemplo, “abre oportunidades para a formação de pequenos negócios e, em alguns
casos, permite que sistemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal,
familiar (patriarcal) e paternalista (“padrinhos”, “patronos” e até estruturas
semelhantes à da máfia) revivam e floresçam, mas agora como peças centrais, e
não apêndices do sistema produtivo” (idem, p. 145). O rápido crescimento de
economias “negras”, “informais” ou “subterrâneas” também tem sido documentado em
todo o mundo capitalista avançado, “levando alguns a detectar uma crescente
convergência entre sistemas de trabalho “terceiromundistas” e capitalistas
avançados” (idem). Contudo, alerta Harvey, “a ascensão” de novas formas de
organização industrial e o retorno de formas mais antigas[14] têm significações
distintas em diferentes lugares. Podem em alguns casos indicar o surgimento de
novas estratégias de sobrevivência para pessoas desempregadas ou totalmente
discriminadas, em outros casos podem representar grupos imigrantes buscando
“entrar num sistema capitalista, formas organizadas de sonegação de impostos ou
o atrativo de altos lucros no comércio ilegal em sua base”, casos cujo efeito é
uma “transformação do modo de controle do trabalho e de emprego”.
Com efeito,
uma das grandes vantagens do uso dessas formas antigas de processo de trabalho e
de produção pequeno-capitalista é o solapamento da organização da classe
trabalhadora e a transformação da base da luta de classes. Nelas, a consciência
de classe já não deriva da clara relação de classe entre capital e trabalho,
passando para um terreno muito confuso dos conflitos interfamiliares e das lutas
pelo poder num sistema de parentescos ou semelhantes a um clã que contenha
relações sociais hierarquicamente ordenadas. A luta contra a exploração
capitalista na fábrica é bem diferente da luta contra um pai ou um tio que
organiza o trabalho familiar num esquema de exploração altamente disciplinado e
competitivo que atende às encomendas do capital multinacional (idem, p.
145).
É
surpreendente, se concordarmos com a observação de Harvey, como o capitalismo
tem cada vez mais se organizado “através da dispersão, da mobilidade
geográfica e das respostas flexíveis nos mercados de trabalho, nos processos de
trabalho e nos mercados de consumo”, para isso contribuindo uma grande
recorrência à inovação tecnológica, de produtos e institucional. Harvey atribui
a dois importantes desenvolvimentos paralelos o alcance da “organização mais
coesa e da centralização implosiva”.
O primeiro
desenvolvimento enfatiza o papel da informação. Informações precisas e
atualizadas transformaram-se numa valiosa mercadoria.[15]
A ênfase na
informação também gerou um amplo conjunto de consultorias e serviços altamente
especializados capazes de fornecer informações quase minuto a minuto sobre
tendências de mercado e o tipo de análise instantânea de dados útil para as
decisões corporativas. Ela também criou uma situação em que vastos lucros podem
ser realizados com base no acesso privilegiado às informações, em particular nos
mercados monetários e financeiros (...). Mas isso é, em certo sentido, apenas a
ponta de um iceberg em que o acesso privilegiado a informações de
qualquer espécie (tais como conhecimentos científicos e técnicos, políticas do
governo e mudanças políticas) passa a ser um aspecto essencial das decisões
bem-sucedidas e lucrativas (idem, p.151).
Embora o
acesso ao conhecimento científico e técnico sempre tenha sido importante como
elemento de competitividade, agora são percebidos uma ênfase e um interesse
renovados, já que as constantes mudanças (“de gostos, necessidades e os sistemas
de produção flexíveis, o conhecimento da última técnica, do mais novo produto,
da mais recente descoberta científica etc.”) implicam a possibilidade de
vantagens na concorrência. O próprio saber se tornou uma “mercadoria-chave” na
luta competitiva. Universidades e instituições de pesquisa entram em uma feroz
competição por pessoal, por ser o primeiro a patentear novas descobertas
científicas. A produção organizada de conhecimento teve uma expansão
extraordinária nas últimas décadas, mas ao mesmo tempo adquiriu cada vez mais um
cunho comercial (idem).
O segundo
desenvolvimento, e podemos concordar com Harvey, foi muito mais importante do
que o primeiro. Trata-se da “completa reorganização do sistema financeiro
global” e da “emergência de poderes imensamente ampliados de coordenação
financeira”. O dualismo uma vez mais está presente no movimento do capital,
levando, de um lado, à formação de conglomerados e corretores financeiros com um
poder global extraordinário, e de outro, a uma “rápida proliferação e
descentralização de atividades e fluxos financeiros por meio da criação de
instrumentos e mercados financeiros totalmente inéditos” (idem, p. 152).
Com a
implementação dos novos sistemas financeiros, a partir de 1972, deu-se uma
mudança no equilíbrio de forças no capitalismo global e o sistema bancário e
financeiro passou a dispor de muito mais autonomia em comparação ao
financiamento corporativo, estatal e pessoal. Não resta dúvida de que a
acumulação flexível recorre mais do que o fordismo ao capital financeiro “como
poder coordenador”, o que significa uma potencialidade, muito maior do que
antes, de crises financeiras e monetárias “autônomas e independentes”.[16]
4. Modernas
formas de flexibilidade: ocultamento de um sistema de poder
Uma das
sérias conseqüências do capitalismo “flexível” é a perda da noção de carreira
para os trabalhadores. Obrigados a saírem de um emprego para outro, estes vêem
interrompida a expectativa de construção de uma carreira ao longo da vida. A flexibilidade retoma, assim, o sentido original da
palavra emprego no século XIV, na medida em que hoje “as pessoas fazem blocos,
partes de trabalho, no curso de uma vida”, como antigamente iriam fazer alguma
coisa que pudessem transportar numa carroça de um lado para o outro.[17]
Segundo
Sennett, as modernas formas de flexibilidade ocultam um sistema de poder
caracterizado pela reinvenção descontínua de instituições; especialização
flexível de produção e concentração de poder sem centralização.
4.1.
Reinvenção descontínua de instituições.
Há uma
tendência hoje na literatura dos negócios a retratar o desejo de mudança como
uma das características exigidas do comportamento flexível. Entretanto, ressalta
Sennett, trata-se na verdade de um determinado tipo de mudança que tem certas
conseqüências para nosso “senso de tempo”. Se num sentido parece haver
continuidade em relação ao que passado, em outro parece ter havido um
rompimento. Assim, na esfera do trabalho, a continuidade se dá pelo sentido de
tempo mutante, mas contínuo, enquanto a ruptura, em contraste, espera que o
tempo se torne descontínuo. Promovendo a descontinuidade do presente com o
passado, a mudança flexível, do tipo que hoje ataca a rotina burocrática, busca,
na visão de Sennett (idem, p. 55), “reinventar decisiva e irrevogavelmente as
instituições”.
Para
“reinventar” as instituições, os administradores valem-se de técnicas
específicas, como usar programas de computador que padronizam procedimentos
operacionais para, por exemplo, “oferecer a um menor número de administradores
controle sobre um maior número de subordinados”. Práticas como essa são
conhecidas pelo termo “reengenharia”, que, na realidade sugere fazer mais com
menos, destacando-se, portanto, como seu maior atributo a redução de empregos.
Mas essa sugestão de eficiência é eficiência é “enganosa”, diz Sennett,
considerando que “a mudança irreversível se dá precisamente porque a
reengenharia pode ser um processo altamente caótico” (idem, p. 56).[18]
A
flexibilidade veio particularmente combater os males da rotina em nome de maior
produtividade, mas talvez se possa duvidar de que o atual momento seja mais
produtivo do que o passado recente, se considerarmos a redução das taxas de
produtividade observadas em todas as grandes sociedades industriais. Os avanços na tecnologia de fato
propiciaram um significativo aumento no setor de manufatura de alguns países,
mas, considerando-se todas as formas de trabalho, de escritório e de fábrica, “a
produtividade reduziu-se no todo, quer seja medida em termos de produção de
trabalhadores individuais ou de hora de trabalho” (idem, p. 57).[19] Mas, na concepção de
Sennett, há motivos fundamentais ocultos no moderno capitalismo para buscar uma
“mudança decisiva, irreversível, por mais desorganizada ou improdutiva que
seja”. Trata-se da volatilidade da demanda do consumidor, que, segundo esse
autor, produz uma segunda característica dos regimes flexíveis, que é a
“especialização flexível de produção”.
4.2.
Especialização flexível.
A
especialização flexível opõe-se radicalmente ao sistema de produção incorporado
no fordismo. Ilhas de produção especializada vieram substituir as a velha e
quilométrica linha de montagem (observada por Daniel Bell). Em várias dessas
fábricas flexíveis na autoindústria “é importante a inovação em resposta à
demanda do mercado, mudando-se as tarefas semanais, e às vezes até diárias, que
os operários têm de cumprir” (idem, p. 60).
A alta
tecnologia e a rapidez das modernas comunicações favorecem a especialização
flexível. O computador permite a fácil reprogramação e configuração das máquinas
industriais. Através dos modernos meios de comunicação, dados do mercado global
ficam ao alcance imediato da empresa. Como essa forma de produção exige rápida
tomada de decisões, tornam-se mais adequados grupos de trabalho pequenos,
diferentemente do que ocorria no fordismo, com sua grande pirâmide
burocrática.
4.3.
Concentração sem centralização de poder.
As mudanças
nas redes, mercados e produção que um regime flexível utiliza permitem o que
Sennett chama de “concentração de poder sem centralização de poder”.
È corrente a
afirmação de que a nova organização do trabalho descentraliza o poder, ou seja,
permite às pessoas nas categorias inferiores das organizações maior controle
sobre as próprias atividades. Mas, conforme demonstra Sennett, tal afirmação não
se sustenta. Hoje, os altos administradores têm uma visão abrangente da
organização, graças aos novos sistemas de informação, o que não deixa muito
espaço aos indivíduos para “esconder-se” em qualquer parte da rede. Do mesmo
modo, “a desagregação vertical[20] e a eliminação de
camadas[21] são tudo, menos
processos descentralizantes” (idem, p. 64).
Uma característica administrativa freqüente na reorganização empresarial é sobrecarregar pequenos grupos de trabalho com muitas tarefas. E, assim, novas formas de poder “desigual e arbitrário” dentro da organização vêm se juntar à “economia da desigualdade” (idem, ibidem). A essa maneira de transmitir a operação de comando, , Sennett denomina “concentração sem centralização” - uma estrutura institucional sem a visibilidade da antiga forma piramidal, mas que nem por isso tornou-se mais simples, ao contrário, trata-se de uma estrutura complexa e considerá-la como um processo de “desburocratização” é um engano. Nas modernas organizações que praticam a concentração sem centralização, segundo Sennett (idem, p. 65), “a dominação do alto é ao mesmo tempo forte e informe”.
4.4.
“Flexitempo”: o tempo no local de trabalho.
Os três
elementos que constituem o regime flexível, apontados por Sennett, podem ser
compreendidos pela forma como se articulam na organização do tempo no local de
trabalho.
O chamado “flexitempo” é um termo bem apropriado para designar as
experiências com vários horários que as organizações flexíveis hoje estão
fazendo. A organização do horário de trabalho perdeu a rigidez dos turnos fixos,
sempre o mesmo, mês após mês. Trata-se agora de organizar horários de trabalho
diferentes, mais individualizados, transformando-se assim o dia de trabalho num
mosaico, como expressivamente o compara Sennett.
O flexitempo
surgiu da entrada de mais mulheres da classe média no mundo do trabalho[22], pois a condição de mães
e os afazeres domésticos exigiam das trabalhadoras maior flexibilidade de
horário, o que acabou contribuindo para a inovação do planejamento flexível do
tempo integral e de meio período. Hoje, conforme observa Sennett, tais mudanças
ultrapassaram a barreira dos gêneros, já que também os homens podem ter horários
maleáveis. Entretanto, embora pareça que tal flexibilidade permite ao
trabalhador maior liberdade do que ao ficar submetido à rotina da fábrica,
ocorre justamente o contrário, pois, como adverte esse autor, o trabalhador
ficou inserido numa “nova trama de controle”. A programação flexível do tempo[23], na realidade,
constitui-se mais numa vantagem do que num direito trabalhista, ou seja, num
“benefício distribuído de maneira desigual e estritamente racionado”, hoje
aplicado apenas em países como Estados Unidos.
Essa nova
trama de controle pode ser exemplificada com “o mais flexível dos flexitempos” –
o trabalho em casa -, levando-nos a concluir com Sennett, que “se o flexitempo é
a recompensa do empregado, também o põe no domínio íntimo da instituição” (idem,
p. 68). Segundo esse autor, trata-se de “prêmio” que provoca grande ansiedade
nos empregadores, pelo medo de perderem o controle sobre os trabalhadores
ausentes e de que os que trabalham em casa abusem dessa liberdade. E tal
preocupação levou à criação de vários tipos de controle para regular os
processos de trabalho concreto dos trabalhadores ausentes do escritório, como:
exigência de contatos telefônicos regulares com o escritório; monitoramento
intra-rede; abertura freqüente dos e-mails pelos supervisores. Isto vem
evidenciar que, embora o trabalhador tenha o controle do local de
trabalho, o flexitempo não lhe permite assumir maior controle sobre o próprio
processo de trabalho e, conforme vários estudos vêm sugerindo, muitas
vezes é maior a supervisão do trabalho sobre os ausentes do escritório do que em
relação aos presentes (idem). O que ocorreu foi uma mudança na forma de
controle, ou seja, os trabalhadores passaram a ser submetidos, não mais a um
controle presencial, mas a um controle “eletrônico”, virtual. Ou, como diz
Sennett (idem, p. 68), a “lógica métrica” do tempo de Daniel Bell passou do
relógio de ponto para a tela do computador, ”porém, se o trabalho tornou-se
fisicamente descentralizado, ficou mais direto o poder sobre o trabalhador”.
Trabalhar em casa, “é a ilha última do novo regime” - diz esse autor.
5.
Subjetividade: da rotina do fordismo à fragmentação do regime
flexível
Caráter é uma construção histórica, pois se nada é “enraizado” na natureza humana, características humanas não são dadas a priori. De acordo com o sistema moral de Marx, o homem “não é a contrapartida animal de uma série de ideais morais abstratos”, posto que pode tornar-se o que é (bom, mau, egoísta, ou qualquer outra coisa) em qualquer momento, conforme as circunstâncias predominantes e é nesse sentido que ele é o “ser automediado da natureza e do homem” (Mészáros, 1981, p. 147). Por outro lado, conforme o define Sennett (1999, p. 10), caráter significa “traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”. Sob esses dois prismas podemos melhor entender a formação do caráter na rotina do fordismo ou na fragmentação do regime flexível de trabalho.
Adam Smith, entendendo ser o caráter formado pela história e
seus movimentos imprevisíveis, pensava sobre a influência da rotina na formação
do caráter. Segundo ele, para desenvolvermos nosso caráter precisamos fugir da
rotina, posto que não há muito a fazer em termos de história, a partir do
momento em que ela é estabelecida (Sennett, idem). Com essa proposição geral,
Smith enalteceu o caráter do homem de negócios, considerando-o o “ser humano
mais plenamente engajado”, que agia “em reação e com simpatia às cambiantes
exigências do momento” (idem, p. 43). Por outro lado, inspirava-lhe pena o
estado de caráter dos trabalhadores industriais atrelados à rotina. Os males da
rotina - a divisão do trabalho sem o controle deste pelo trabalhador - descritos
por Smith, iriam fornecer elementos à análise de Marx sobre a transformação do
tempo em produto[24].
As preocupações com o tempo de rotina no capitalismo
industrial que acabava de surgir em fins do século dezoito chegam ao século XX,
com o fordismo. Antes de Ford, a indústria automobilística se baseava no
artesanato, com trabalhadores altamente qualificados e que gozavam de grande
autonomia, fazendo serviços complexos nas diferentes partes de um automóvel
durante todo um dia de trabalho. Segundo Sennett (idem, p. 44), a indústria de
automóveis era, na verdade, “um conjunto de lojas descentralizadas”, mas de 1910
a 1914, quando Henry Ford industrializou seu processo de produção, sua a
fábrica[25] foi considerada “um
ilustre exemplo da divisão do trabalho em bases tecnológicas”. Nessa época, Ford
privilegiou os empregos dos chamados trabalhadores especialistas (operavam em
miniaturas que exigiam pouco pensamento ou julgamento) em relação aos artesãos
qualificados. Em 1917, o maior contingente (55%) da força de trabalho era de
especialistas[26].
Entretanto, a escravidão ao tempo rotineiro não foi aceita
passivamente, posto que os trabalhadores sabotavam a administração do
tempo-movimento (os estudos de Taylor) e ignoravam as especificações de métodos
e processos de trabalho sempre que estes contrariavam seus interesses. Além
disso, deprimidos, reduziam sua produtividade.
Na década de 1950, a fábrica[27] transformou-se. Imensa e
bem engrenada, operava com base em três princípios: a lógica da dimensão, a
lógica da hierarquia e a lógica do tempo métrico.
A lógica da dimensão era simples: “maior, mais
eficiente”. A concentração de todos os elementos de produção num lugar levava a
economizar energia, poupar no transporte de materiais e facilitava a
interligação da fábrica com os trabalhadores de escritório e executivos.
Na lógica da hierarquia é “superestrutura” que
organiza e dirige a produção, extrai todo trabalho cerebral possível da fábrica.
Tudo é centralizado nos departamentos de planejamento, cronograma e projeto, o
que fazia os técnicos e administradores ficarem o máximo possível distantes da
maquinaria, deixando “o trabalhador da base, cuidando só de detalhes, divorciado
de qualquer decisão ou modificação em relação ao produto no qual está
trabalhando” (Daniel Bell, apud Sennett, idem, p. 47).
Na lógica taylorista do “tempo métrico”, o tempo é
minuciosamente calculado em toda parte na vasta fábrica, permitindo aos altos
administradores saber com precisão sobre o trabalho que cada um deveria estar
realizando num dado momento. O “planejamento minucioso do tempo de trabalho”
também era utilizado no pagamento por antigüidade. Este era “finamente
sintonizado” com o número total de horas trabalhadas na fábrica; um trabalhador
podia “calcular minuciosamente” os benefícios do tempo de férias e ausência por
doença. A “micrométrica do tempo” regia as promoções e os benefícios, tanto dos
escalões inferiores dos escritórios, como dos trabalhadores braçais na linha de
montagem.
A métrica do tempo, contudo, transformara-se em outra coisa
que não um ato de repressão e dominação praticada pela administração em nome do
crescimento da gigantesca organização industrial. Para os trabalhadores, o tempo
rotinizado tornara-se uma “arena”, diz Sennett, onde podiam afirmar suas
próprias exigências e poder.
5.2. Trabalho flexível e subjetividade: uma “guerra sem
recurso às armas[28]”
Há pessoas com capacidade de maior mobilidade no novo
capitalismo. São pessoas com determinados traços de caráter, como “capacidade de
desprender-se do próprio passado” e “confiança para aceitar a fragmentação”,
traços que geram a espontaneidade (Sennet, idem, p. 73). Entretanto, esses
mesmos traços têm um efeito autodestrutivo para aqueles empregados mais comuns
que “tentam jogar segundo as mesmas regras” no regime flexível. Esses têm seu
caráter corroído pelo novo sistema de poder flexível.
Segundo Dejours, vivemos numa guerra econômica entre os países
que tem a competitividade como arma central. A idéia de que uma ameaça de
quebra ronda os países foi naturalizada. Em nome da “sobrevivência
da nação” e da “garantia da liberdade”, é justificada a
entrada nessa guerra, mesmo à custa da utilização de “métodos cruéis” no mundo
do trabalho (Dejours, 1999, p. 13).
No mercado de trabalho, os considerados inaptos para o combate
nessa “guerra econômica” são demitidos da empresa, como “os velhos que perderam
a agilidade, os jovens mal preparados, os vacilantes”. Quanto aos “aptos”, deles
são exigidos os maiores desempenhos em relação a produtividade, disponibilidade,
disciplina e abnegação. E é assim, da nossa eficácia frente aos nossos
concorrentes, que depende nossa sobrevivência.
Com essa perspectiva, Dejours
defende a tese de que essa guerra implica “sacrifícios individuais consentidos”
e “sacrifícios coletivos decididos em altas instâncias”, em nome da “razão
econômica”. Entretanto, pensa Dejours, essa guerra não tem origem unicamente na
natureza do sistema econômico, no mercado ou na globalização, mas também nas
condutas humanas. A questão desse autor é saber sobre as
“motivações subjetivas do consentimento”.
5.2.1. O sofrimento no trabalho e suas causas
A tese
defendida por Dejours (1999), de que por meio do sofrimento no trabalho se forma
o consentimento para participar do sistema, traz grande contribuição ao debate
sobre a produção de subjetividade no mundo do trabalho flexível. Segundo esse
ponto de vista, o sofrimento para os que trabalham aumenta
na medida em que vão perdendo a esperança de melhorar sua condição de vida no
futuro. A relação com o trabalho vai perdendo o sentido, dissociando-se da
promessa de felicidade e segurança compartilhadas para si, os colegas, os amigos
e os próprios filhos. O sofrimento vai aumentando pela não correspondência entre
o esforço no trabalho e a possibilidade de satisfazer as expectativas criadas no
plano material, afetivo, social e político.
Entretanto,
esse autor chama a atenção para o fato de que o sofrimento não desativa a
“maquinaria de guerra econômica”, ao contrário, ele a alimenta por meio de uma
“sinistra inversão”, em que homens e mulheres criam estratégias de defesa
contra o sofrimento padecido no trabalho. São estratégias sutis, engenhosas,
diversificadas e criativas. Mas também, tais estratégias contêm uma “armadilha”,
alerta Dejours, para os que conseguem suportar o sofrimento sem se abater,
mostrando-se necessário, portanto, tomar-se consciência do sofrimento no
trabalho.
A realidade
mostra as diversas causas do sofrimento dos que trabalham. Estes sofrem por
freqüentes infrações das leis trabalhistas; por enfrentarem riscos, como
radiações, vírus; porque se submetem a horários alternados etc.; por temerem não
satisfazer as imposições da organização do trabalho quanto a horário, ritmo,
formação, informação, aprendizagem, nível de instrução e de diploma,
experiência, rapidez de aquisição de conhecimentos teóricos e práticos (Dessors
& Torrente, 1996, apud Dejours, idem), bem como por não se adaptarem à
“cultura” ou à “ideologia” da empresa, às exigências do mercado, às relações com
os clientes, os particulares ou o público etc. (Dejours,
idem, p. 28). Esse
sofrimento no trabalho é “amplamente ignorado”, segundo Dejours, e tem como
causas:
a) Medo
da incompetência
Nas
situações comuns de trabalho, não importa as qualidades da organização do
trabalho e da concepção, é “impossível” cumprir os objetivos da tarefa
“respeitando escrupulosamente” as prescrições, as instruções e os procedimentos.
Há situações em que ocorrem falhas e o trabalhador, muitas vezes, não tem como
saber se a anomalia surgida é do sistema (técnico, por exemplo), ou devido à sua
própria incompetência. A perplexidade diante do fato acaba gerando angústia e
sofrimento, que tomam a forma de “medo de ser incompetente”, de “não estar à
altura” ou de se mostrar “incapaz de enfrentar” adequadamente situações incomuns
ou incertas, que exigem responsabilidade.
b)
Pressão para trabalhar mal
Aqui não se
trata de ter ou não competência e habilidade. Mesmo quando o trabalhador sabe o
que deve fazer, não o consegue, já que pressões sociais do trabalho o impedem,
como, por exemplo: colegas criam-lhe obstáculos, o ambiente social é péssimo,
cada um trabalha por si, enquanto os demais sonegam informações, prejudicando a
cooperação. Segundo Dejours (idem, p. 32), “ser constrangido a executar mal o
seu trabalho, a atamancá-lo ou a agir de má-fé é uma fonte importante e
extremamente freqüente de sofrimento no trabalho, seja na indústria, nos
serviços ou na administração”.
c) Falta
de esperança no reconhecimento
O
reconhecimento não é uma reivindicação sem maior importância para os que
trabalham. Ao contrário, ele assume papel decisivo na dinâmica da “mobilização
subjetiva da inteligência e da personalidade” no trabalho, ou, como é denominado
em psicologia, “motivação no trabalho”. Se não puder usufruir os benefícios do
reconhecimento do seu trabalho e encontrar dessa forma o sentido da sua relação
com ele, a pessoa sofre, e é um sofrimento tão “absurdo” e recorrente, que acaba
desestabilizando a identidade e a personalidade, e levando à loucura.
d)
Sofrimento e defesa
Apesar de
esperado por todos os trabalhadores, o reconhecimento pelo trabalho efetivado
raramente acontece de modo satisfatório, sendo de se esperar que o sofrimento no
trabalho acabe gerando uma “série de manifestações psicopatológicas”. Se,
entretanto, o sofrimento não se manifesta numa ruptura do equilíbrio psíquico, é
porque “contra ele o sujeito emprega defesas que lhe permitem controlá-lo”
(idem, p. 35). Além dos clássicos mecanismos de defesa, existem “estratégias
coletivas de defesa”, que, especificamente marcadas pelas pressões reais do
trabalho, são construídas e empregadas pelo conjunto dos trabalhadores.
Dejours
procura mostrar que essas estratégias defensivas, entretanto, podem também se
transformar em “armadilha”, tornando os trabalhadores insensíveis ao que faz
sofrer. Além disso, diz esse autor, às vezes criam uma tolerância ao sofrimento,
não apenas psíquico, mas ao “sofrimento ético”, ou seja, permitem ao
sujeito tolerar o sofrimento que, embora o condenando moralmente, inflige a
outrem, em virtude do seu trabalho. Como é provável que tal sofrimento também
acometa aquele que assim age, adverte Dejours, para este manter seu equilíbrio
psíquico deverá ser capaz de construir defesas contra tal sofrimento.
Por outro
lado, encontram muitas dificuldades para reagir coletivamente os que sofrem “por
causa da intensificação do trabalho, por causa do aumento da carga de trabalho e
da fadiga, ou ainda por causa da degradação progressiva das relações de
trabalho”, como arbitrariedade das decisões, desconfiança, individualismo,
concorrência desleal entre agentes, arrivismo desenfreado etc. (idem, p. 43).
Em termos de precarização do trabalho,
Dejours apresenta quatro efeitos. O primeiro, é a intensificação do trabalho e o
aumento do sofrimento subjetivo. O segundo, a neutralização da mobilização
coletiva contra o sofrimento, a dominação e a alienação. O terceiro, é a
estratégia defensiva do não falo, não vejo, não ouço,
indicando que, antes de tudo, deve-se resistir e para isso é necessário ficar
alheio ao sofrimento e à injustiça infligidos a outrem. E o quarto, é o
individualismo, o cada um por si.
Contudo, a
precarização não é específica dos trabalhadores precários, pois são atingidos,
também, com grandes conseqüências, a vivência e a conduta dos que trabalham.
Afinal, conforme argumenta Dejours, são os empregos destes que se precarizam,
tendo em vista a possibilidade de se recorrer a empregos precários para
substituí-los ou a demissões, ao menor deslize praticado pelo trabalhador.
5.2.3.
Organização do trabalho: entre o prescrito e o real, a disciplina e o zelo
É próprio
das empresas, instituições e serviços um grande problema na organização do
trabalho: a defasagem entre a organização prescrita e a real,
independente do grau de refinamento das prescrições e dos métodos de trabalho
(Dejours, idem). Não é possível prever tudo antecipadamente à situação real. O
suposto trabalho de execução, diz esse autor, “nada mais é do que uma
quimera”, pois o processo de trabalho “só funciona” quando os trabalhadores
mobilizam sua inteligência, individual e coletivamente, em benefício da
organização do trabalho.
Uma fábrica,
uma usina, ou um serviço só funcionam quando os trabalhadores, por conta
própria, usam de artimanhas, macetes, quebra-galhos, truques; quando se
antecipam, sem que lhes tenham explicitamente ordenado, a incidentes de toda a
sorte; quando, enfim, se ajudam mutuamente, segundo os princípios de cooperação
que eles inventam e que não lhes foram indicados de antemão (idem, p. 56).
O exercício
dessa inteligência no trabalho, entretanto, adverte o autor,
geralmente só é possível infringindo os regulamentos e ordens, ou seja, não
basta o trabalhador apenas dar mostras de inteligência para suprimir a defasagem
entre a organização do trabalho prescrita e a organização do trabalho real, pois
muitas vezes essa inteligência só pode ser usada “semiclandestinamente”.
A essas
características da “inteligência eficiente no trabalho” denomina-se
“zelo” no trabalho. São características cognitivas e afetivas. Como
característica cognitiva trata-se de saber lidar com o imprevisto, o inusitado,
o que ainda não foi assimilado, rotinizado. Quanto às afetivas, é ousar
desobedecer ou transgredir, agir inteligentemente, mas de forma clandestina, ou
discretamente.
Frente a
essas características, trata-se de questionar o poder da
disciplina sobre a qualidade do trabalho. Com sua análise crítica sobre o
tema, Dejours (p. 57) traz a seguinte argumentação: “Se o sistema nazista de
produção e administração funcionava é porque os trabalhadores e o povo
contribuíam em massa com sua inteligência e engenhosidade para torná-lo eficaz.
Se eles tivessem observado rigorosamente a disciplina, o sistema teria sido
paralisado”.
5.2.4. Medo:
o novo “motor” da inteligência no trabalho
Em pesquisas
recentes constatou-se a possibilidade de um novo fator de mobilização da
inteligência no trabalho: o medo. Segundo Dejours, até então se pensava que a
mobilização subjetiva da inteligência e da engenhosidade no trabalho repousava
essencialmente sobre a livre vontade dos trabalhadores. Hoje, a ameaça de
demissão que paira sobre a maioria dos que trabalham acaba gerando o medo que os
mobiliza a melhorar sua produção. Sob influência do medo, por exemplo, esses
trabalhadores se mostram capazes de grande inventividade para melhorar a
quantidade e a qualidade da sua produção, mesmo que para isso precisem
“constranger” seus colegas, visando a conseguir posição mais favorável no
processo seletivo de dispensas.
O
medo é hoje um recurso amplamente utilizado como ameaça pela
administração das empresas. Porém, esclarece esse autor, há limites para a
escala do gerenciamento pela ameaça, já que depois de certo nível e tempo, o
medo paralisa, pois “quebra o moral” do coletivo. Além disso, é imprevisível o
prazo para os limites se revelarem, ao contrário do que prevêem as teorias
clássicas da motivação, que consideram ilimitada a mobilização da inteligência
pela gratificação e reconhecimento do trabalho bem-feito.
Na concepção
de Dejours, existem realmente dificuldades na organização da produção; são
inevitáveis as tensões; os resultados são conseguidos com dificuldade; é
autêntico o sofrimento dos empregados estatutários e dos que trabalham em
empregos precários, “mas o sistema funciona e parece mesmo poder funcionar
duradouramente dessa maneira” (idem, p. 58). Ou seja, parece sinalizar esse
autor vida longa para o regime flexível[29] do capital.
A análise da
situação mundial contemporânea ressalta expressiva e dramaticamente a
intensidade da crise estrutural global do capitalismo. Ao contrário das crises
anteriores, que foram parciais e localizáveis, parece que pela primeira se vê o
capitalismo abalado em suas bases como sistema mundial. Contrastando com
situações passadas, o caráter visivelmente global da crise sócio-econômica
demanda soluções globais para os problemas do nosso tempo.
Na atual
fase de desenvolvimento sócio-histórico, os problemas relacionados ao mundo do
trabalho têm implicações globais, pois, embora de maneiras distintas, envolvem
todos os sistemas sociais existentes. Tratando-se de uma fase de transição do
fordismo para a acumulação flexível, as novas tecnologias e formas de
organização flexível não se tornaram hegemônicas em todos os lugares, havendo,
portanto, a convivência de uma produção fordista altamente eficiente, em alguns
setores e regiões, e de sistemas de produção mais tradicionais, apoiados em
relações de trabalho artesanais, paternalistas ou familiares. O crescimento
destes últimos, até mesmo em países capitalistas avançados e, muitas vezes, em
detrimento da maneira fordista de produção, significa uma mudança com sérias
implicações, tanto na produção e apropriação de mais-valia, como na natureza e
composição da classe trabalhadora global. E, também, nas condições de formação
da consciência e da ação política. Nesse sentido, está mais do que nunca evidente a atualidade
do conceito marxista de “transcendência da auto-alienação do trabalho”, ou seja,
não se pode mais conceber hoje como tarefa histórica mundial e imediata a
conquista política do poder, mas em termos de alternativas estratégicas
sócio-econômicas, com implicações globais de longo alcance.
Se na
perspectiva de Marx o caráter social do trabalho se manifesta diretamente, sem a
mediação alienante da divisão do trabalho, na realidade capitalista dos nossos
dias, porém, a divisão do trabalho separa o homem das condições e poderes da
vida, e faz com que estes o governem. A competitividade tornou-se uma arma na
luta pela sobrevivência, individual, empresarial, entre países e num mesmo país.
Nessa guerra “sem recurso às armas”, os trabalhadores considerados velhos, que
perderam a agilidade, e jovens “mal preparados” são alvo fácil de demissão, mas,
também os tidos como aptos, se não corresponderem às exigências de maior
produtividade, disponibilidade, disciplina e abnegação. Por outro lado, a
precarização, que não é específica dos trabalhadores precários, tem grandes
conseqüências sobre as relações e condutas dos que estão empregados, pela
facilidade de substituição e demissão, graças às freqüentes infrações das leis
trabalhistas e à flexibilização da organização e relações de trabalho. Essas,
entre tantas outras, são causas de sofrimento no trabalho.
A
flexibilidade ganhou hoje o espaço outrora destinado à rotina. Se esta se
converteu numa conquista pessoal, no início do capitalismo industrial, ao
converter-se para os trabalhadores numa “arena” onde podiam afirmar suas
próprias exigências e seu poder, a flexibilidade e a mobilidade,
contraditoriamente, transformaram-se em poderes de maior controle sobre a força
de trabalho. Tal não surpreende, considerando que a acumulação flexível é uma
forma de capitalismo, sendo, portanto, de se esperar a manutenção das condições
necessárias do modo capitalista de produção. E esta dinâmica aponta a tendência,
no atual momento, de acumulação flexível do capital, com uma “recombinação” de
mais-valia absoluta e mais-valia relativa. Estas duas estratégias de obtenção de
lucro, vêm a se configurar, por um lado, na intensificação do trabalho, com mais
horas de trabalho e a redução geral das condições de vida pela erosão do salário
real. Por outro lado, com a recorrência a novas formas organizacionais e
tecnológicas, é posta em prática uma ação para gerar lucros temporários para
firmas inovadoras e lucros mais generalizados com a redução dos custos de bens
que definem o padrão de vida do trabalhador, e com isso gerando excedentes de
força de trabalho.
A fase de
acumulação flexível pode, portanto, assim ser concebida, exatamente pela origem
e natureza da mais-valia produzida. E, como a questão da alienação está
diretamente relacionada com a questão do produto excedente e da mais-valia,
trata-se de entender como se produz a subjetividade nesse contexto do
capitalismo “flexível”. Para isso, mostra-se imperativo compreender, não apenas
as causas do sofrimento no trabalho, mas também o sistema de poder que se oculta
nas modernas formas de flexibilidade.
Considerado
o caráter social do trabalho, que é a condição absoluta de uma sociedade, e que
a divisão do trabalho expressa as condições de alienação, a questão que se
coloca é como superar a alienante condição histórica da divisão do trabalho,
frente à flexibilidade no mundo do trabalho e na produção das novas
subjetividades. Trata-se, pois, de pensar a questão no âmbito da auto-realização
e emancipação humana.
Referências
bibliográficas
DEJOURS,
Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 1999.
HARVEY,
David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
MARX, Karl.
O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
MÉSZÀROS,
István. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1981.
SENNETT,
Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Editora Record,
1999.
* Este trabalho apresenta parte do estudo preliminar desenvolvido pela autora com vistas a uma pesquisa sobre a formação e as condições de trabalho do professor das licenciaturas.
** Doutoranda no PPFH/UERJ- Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. mariemi@terra.com.br.
[1] Tomamos aqui a definição de Sennett (1999, p. 10) sobre o caráter: “traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem”.
[2] E Harvey acrescenta, “se,
afinal, os trabalhadores estivessem convencidos de que os capitalistas podem
incorporar práticas de trabalho mais flexíveis mesmo quando eles não o podem, a
disposição de luta dos trabalhadores por certo será enfraquecida” (Harvey, 2005,
p. 179).
[3] A propósito dessas
questões: “As coordenações de mercado (freqüentemente do tipo subcontratação) se
expandiram em prejuízo do planejamento corporativo direto no âmbito do sistema
de produção e apropriação de mais valia. A natureza e a composição da classe
trabalhadora global também se modificaram, o mesmo ocorrendo com as condições de
formação de consciência e de ação política. A sindicalização e a ‘política de
esquerda’ tradicional tornaram-se muito difíceis de manter diante de, por
exemplo, sistemas de produção patriarcais (familiares) características do
Sudeste Asiático ou de grupos imigrantes em Los Angeles, Nova Iorque e Londres.
As relações de gênero também se tornaram muito mais complicadas, ao mesmo tempo
que o recurso à força de trabalho feminina passou por ampla disseminação. Do
mesmo modo, aumentou a base social de ideologias de empreendimentismo,
paternalismo e privatismo” (idem, p. 179).
[4] Não é objetivo da presente exposição aprofundar tal análise, mas tão somente esboçar o delineamento dos pontos a serem posteriormente analisados com maior propriedade, quando da elaboração do capítulo primeiro da tese a que se reporta o presente texto.
[5] Conforme ressalta Harvey
(2005, p. 170), na análise de Marx, não havia “uma maneira pela qual a
combinação dessas três condições necessárias pudesse produzir um crescimento
equilibrado e sem problemas; além de as tendências de crise do capitalismo
apresentarem a tendência de produzir fases periódicas de superacumulação –
definida como uma condição em que podem existir ao mesmo tempo capital ocioso e
trabalho ocioso sem nenhum modo aparente de se unirem esses recursos para o
atingimento de tarefas socialmente úteis. Uma condição generalizada de
superacumulação seria indicada por capacidade produtiva ociosa, um excesso de
mercadorias e de estoques, um excedente de capital-dinheiro (talvez mantido como
entesouramento) e grande desemprego. As condições que prevaleciam nos anos 30 e
que surgiram periodicamente desde 1973 têm de ser consideradas manifestações
típicas da tendência de superacumulação”.
[6] A primeira condição é que
“uma taxa equilibrada de crescimento é essencial para a saúde de um sistema
econômico capitalista, visto que só através do crescimento os lucros podem ser
garantidos e a acumulação do capital, sustentada. Isso implica que o capitalismo
tende preparar o terreno para uma expansão do produto e um crescimento em
valores reais (e, eventualmente, atingi-los), pouco importam as conseqüências
sócias, políticas, geopolíticas ou ecológicas. Na medida em que a virtude vem da
necessidade, um dos pilares básicos da ideologia capitalista é que o crescimento
é tanto inevitável como bom. A crise é definida, em conseqüência, como falta de
crescimento” (idem, p.164).
[7] Isso não significa “que o trabalho se aproprie de pouco, mas que o crescimento sempre se baseia na diferença entre o que o trabalho obtém e aquilo que cria. Por isso, o controle do trabalho, na produção e no mercado, é vital para a perpetuação do capitalismo. O capitalismo está fundado, em suma, numa relação de classe entre capital e trabalho. Como o controle do trabalho é essencial para o lucro capitalista, a dinâmica da luta de classes pelo controle do trabalho e pelo salário de mercado é fundamental para a trajetória do desenvolvimento capitalista” (Harvey, idem, p. 166).
[8] Esse fato “decorre em parte
das leis coercitivas, que impelem os capitalistas individuais a inovações em sua
busca de lucro. Mas a mudança organizacional e tecnológica também tem
papel-chave na modificação da dinâmica da luta de classes, movida por ambos os
lados, no domínio dos mercados de trabalho e do controle do trabalho. Além
disso, se o controle do trabalho é essencial para a produção de lucros e se
torna uma questão mais ampla do ponto de vista do modo de regulamentação, a
inovação organizacional e tecnológica no sistema regulatório (como o aparelho do
estado, os sistemas políticos de incorporação e representação etc.) se torna
crucial para a perpetuação do capitalismo. Deriva em parte dessa necessidade a
ideologia de que o ”progresso” é tanto
inevitável como bom“ (idem, ibidem).
[9] Segundo Harvey, há muitos
exemplos e abundantes provas da desvalorização como resposta à superacumulação a
partir de 1973, mas “a desvalorização tem um alto preço político e atinge amplos
segmentos da classe capitalista, da classe trabalhadora e das várias outras
classes sociais que formam a complexa sociedade capitalista moderna”. Contudo,
argumenta o autor, “a desvalorização controlada através de políticas
deflacionárias administradas é uma opção muito importante e de modo algum
incomum para lidar com a supercumulação” (idem, p. 170).
[10] Harvey (idem, ibidem) avalia que “a virtude do regime fordista-keynesiano, foi, com efeito, a possibilidade de criação de um equilíbrio de forças, mesmo tênue, através do qual os mecanismos que causavam o problema da superacumulação (o ritmo da mudança tecnológica e organizacional e a luta pelo controle do trabalho) pudessem ser mantidos sob suficiente controle para se garantir um crescimento equilibrado”.
[11] Sobre esse ponto, ver Harvey (2005, p. 171-173).
[12] Mesmo os novos sistemas de
produção tenderam a se transferir, uma vez padronizados, dos seus centros
inovadores para localidades terceiro-mundistas (a transferência da Atari, em
1984, do Vale do Silício para o Sudeste Asiático, com sua força de trabalho de
baixa remuneração, é um caso exemplar) (Harvey, 2005, p. 174).
[13] Para o autor, o resultado
desse processo é um tipo de estrutura de mercado de trabalho conforme o
detalhado no Flexible Patterns of Work (1986, apud Harvey, 2005, p. 143).
[14] Essas formas mais antigas, são “com freqüência dominadas por novos grupos de imigrantes em grandes cidades, como filipinos, sulcoreanos, vietnamitas e naturais de Taiwan em Los Angeles, ou indianos e nativos de Bangladesh no leste de Londres” (Harvey, idem, p. 145).
[15] Conforme ressalta Harvey, o
‘acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte capacidade de
análise instantânea de dados, tornaram-se essenciais à coordenação centralizada
de interesses corporativos descentralizados. A capacidade de resposta
instantânea a variações das taxas de câmbio, mudanças das moedas e dos gostos e
iniciativas dos competidores tem hoje um caráter mais crucial para a
sobrevivência corporativa do que teve sobre o fordismo” (idem, p.151).
[16] “Boa parte da fluidez, da
instabilidade e do frenesi pode ser atribuída diretamente ao aumento dessa
capacidade de dirigir os fluxos de capital para lá e para cá de maneiras que
quase parecem desprezar as restrições de tempo e de espaço que costumam ter
efeito sobre as atividades materiais de produção e consumo” (idem, p. 155).
[17] Esse era o sentido original de job (hoje: serviço, emprego), no inglês do século XIV (Sennett, 1999, p. 91).
[18] Em meados da década de
1990, por exemplo, tornou-se claro para muitos líderes empresariais que “só na
vida de fantasia e muitíssimo bem paga dos consultores pode uma grande
organização definir um novo plano de negócios, enxugar-se e ‘replanejar-se’ à
perfeição, e depois tocar em frente o novo projeto” (Sennett, 1999, p. 57).
[19] Segundo Sennett (1999, p.
59), “alguns economistas têm mesmo afirmado que, quando se somam todos os custos
do trabalho computadorizado, a tecnologia mostra de fato um déficit de
produtividade.” Argumanta esse autor que “ineficiência ou desorganização não
significam, porém, que não há sentido na prática da mudança aguda, demolidora” e
que “na operação dos mercados modernos, a demolição de organizações se tornou
lucrativa”,. Entende também que, “embora possa não ser justificável em termos de
produtividade, os retornos a curto prazo para os acionistas proporcionam um
forte incentivo aos poderes do caos disfarçados pela palavra “reengenharia”, que
parece convincente”. Observa, também, que empresas perfeitamente viáveis “são
estripadas ou abandonadas, empregados capazes ficam à deriva, em vez de ser
recompensados, simplesmente porque a organização deve provar ao mercado que pode
mudar”.
[20] A “desagregação vertical” dá aos membros de uma ilha empresarial múltiplas tarefas a cumprir (Sennett, 1999, p. 56).
[21] Eliminar camadas (“delayering”) é “a prática específica de oferecer a um menor número de administradores controle sobre um maior número de subordinados” (idem, ibidem).
[22] Segundo Sennett (1999, p.
67), nas economias desenvolvidas do mundo em 1990, quase 50 por cento da força
de trabalho profissional liberal e técnica já eram de mulheres, a maioria
empregada em tempo integral, porém, essas trabalhadoras precisavam “de horas de
trabalho mais flexíveis; em todas as classes, muitas delas são empregadas de
meio período e mães em período integral”.
[23] O flexitempo é bem diferente da forma de organizar o trabalho, até então conhecida: “não é como o calendário de folgas, em que os trabalhadores sabem o que esperar; tampouco é comparável com o simples total de horas semanais de trabalho que uma empresa pode estabelecer para seus empregados de nível inferior” (idem).
[24] Sennett (1999, p. 43)
destaca que Marx acrescenta à descrição da rotina da fábrica de alfinetes de
Smith “o contraste com práticas mais antigas, como o sistema alemão de
Tagwerk, em que o trabalhador era pago por dia; nessa prática, o
trabalhador podia adaptar-se às condições de seu ambiente, trabalhando diferente
quando chovia ou fazia sol, ou organizando tarefas para levar em conta a entrega
dos suprimentos; havia ritmo nesse trabalho, porque o trabalhador estava no
controle”.
[25] A fábrica de Highland Park, da The Ford Motor
Company.
[26] Os outros 15 por cento eram limpadores e faxineiros não qualificados e os artesãos e técnicos haviam caído para 15 por cento (Sennett, 1999).
[27] A metáfora utilizada por Smith, não se aplicava à imensa jaula em que se transformou a Willow Run, fábrica de automóveis da General Motors, em Michigan.
[28] Neste tópico, recorro à
análise de Dejours (1999), pelo que contribui nesta discussão sobre os efeitos
do mundo do trabalho, particularmente sob os aportes psicológicos e éticos, na
formação das subjetividades atuais.
[29] Utilizo aqui a palavra regime no sentido que lhe dá Sennett (1999, p. 63): “sugere os termos de poder nos quais se permite que operem os mercados e a produção”.